Vou escrevendo aqui o que me lembro do fascinante período em que passei no Japão. Espero que sirva de estímulo a muitos para que trilhem esse caminho tão rico.
Estou escrevendo na ordem inversa. O começo da história está lá embaixo, e vou botando as memórias mais recentes cá em cima, devido à estrutura do blog.
9- A doce vida de estudante de línguas
Estou escrevendo na ordem inversa. O começo da história está lá embaixo, e vou botando as memórias mais recentes cá em cima, devido à estrutura do blog.
9- A doce vida de estudante de línguas
Queria
aprender ao máximo a língua japonesa. Se estava no banheiro e via no mictório
um kanji que nunca tinha visto, perguntava ao japonês do mictório ao lado.
Coincidiu de ser o professor Mizutani, o diretor do Gengo Center, autoridade em
ensinar japonês para estrangeiros reconhecido em todo o país. Isso aí se lê suigara (吸い殻), ele me ensinava alegre por ver minha força de vontade.
Soube que na
universidade havia um coral. As escolas japonesas sempre têm grupos de
atividade, os chamados kurabu (club), onde os estudantes praticam artes
marciais, participam de bandas de música, torcidas, etc. Em São Paulo, eu participava
do coral da USP, o Coralusp, um coral de elite, onde a maioria dos membros era
regentes de outros corais. Nem sei como me aceitaram. Desafinado por formação,
tive muitos problemas quando estudei flauta doce na Escola Municipal de Música.
Felizmente a professora de flauta doce, Therezinha Saghaard, não desanimou e me
instruiu a sentir o som primeiro, antes de tentar soltar a voz cantando
qualquer nota. Com isso melhorei um pouco e passei a ser um afinado teórico,
com muito esforço. A falta de ensino musical no Brasil cria gerações de
desafinados, que cantam "Parabéns pra você" em milhares de tons
simultâneos nas festas de aniversário. Bastaria uma simples orientação, e o país
todo poderia se ver livre dessa cacofonia.
Sei que o
pessoal do Coralusp era muito simpático, e me deixavam participar. Quando eu soube
que havia um coral na Universidade de Nagoya, vi aí uma boa oportunidade de me entrosar
mais com os japoneses, fazendo algo agradável. No intervalo do almoço, passei
no prédio onde eles ensaiavam, e fui falando cheio de cerimônia, conforme os
professores do curso de língua japonesa tinham orientado a gente a fazer:
-Soube que aqui
tem um coral...
-Sim, e daí? - o rapazinho me perguntou sem cerimônia
nenhuma.
Me aceitaram, e fiquei sendo o único
estrangeiro, no meio dos 40 estudantes japoneses. Era uma turma legal, me ensinavam
novas palavras, brincavam muito uns com os outros. As músicas que ensaiávamos
eram complicadas, músicas contemporâneas, com harmonias malucas, letras complicadas,
que tinha que decorar. Eles pagavam a um maestro para nos ensaiar, e, quando o
ensaio terminava, todos faziam uma reverência e agradeciam a ele, mesmo sendo
pago. Fizeram uma vaquinha para alugar o melhor palco da cidade, onde Gal Costa
tinha se apresentado, para a nossa apresentação. Tive que comprar um terno para
o evento. Como não gosto de ternos, comprei o mais barato que tinha. Um japonês
combinou comigo de irmos juntos até a loja, comprar. Ele combinou comigo de nos
encontrarmos no Seikyo (o restaurante universitário) às dez pra uma. Fiquei impressionado
em ver a precisão dele. Dez pra uma! Nem uma hora, nem quinze pra uma! Enquanto
eu estava assim atônito, ele voltou todo preocupado para corrigir que não
poderia chegar às dez pra uma, seria cinco pra uma! Vá tomar banho com tanta precisão!
Chegar atrasado é considerado uma grande descortesia, pois obrigar uma pessoa a
ficar sem fazer nada, somente esperando por você, é desprezar o tempo que a
pessoa pode usar para algo mais útil. Quando o trem bala atrasa 3 minutos, eles
pedem muitas desculpas pelos alto-falantes.
No dia da
apresentação do coral, o regente me botou bem na frente por ser diferente. Até
hoje minha mulher se ri da minha cara na foto, com o cabelo castanho, parecendo
um dos Pequenos Cantores de Viena. O coral tinha várias músicas boas, além
dessas contemporâneas, e muitas delas minha mulher usa ainda hoje, para o nosso
coral Kosmos, que canta somente músicas japonesas em Salvador, há 19 anos.
Enquanto
estudávamos o idioma japonês, o governo nos propiciava viagens turísticas.
Fomos conhecer Nara e Kyoto no inverno. Ainda lembro da briga que teve na hora
da saída do ônibus, porque um estudante europeu queria ir também, pagando todas
as despesas do próprio bolso, mas os professores não deixavam porque ele teria
aula. Uma atitude bem japonesa. O estudante eram pai de família, maior de
idade, mas era tratado como criança, retirado à força do ônibus. No Japão, não
importa a idade, estudante é sempre visto como criança. Além disso o senso de
responsabilidade é muito forte. Se acontecesse alguma coisa a esse estudante,
que não estava escalado para a viagem, eles que seriam responsabilizados.
Kyoto, cheia
de templos antigos, com aquela arquitetura bem característica do Japão, era totalmente
diferente do nosso mundo aqui. Mas o frio era tanto que, mesmo com luvas, as
pontas dos dedos doíam. Por isso não consegui curtir tanto. Ficávamos nos
melhores hotéis, parecendo que o governo japonês queria mesmo fazer de nós uma
elite. Ou mostrar bem todo o seu esplendor. No Brasil a gente se acostuma a
viver numa sociedade estratificada. Tem coisas que são para ricos e tem lugares
de pobres. Tem a expressão: aqui não é lugar para você. Sabe aquela sensação de
um favelado passeando por um shopping no bairro nobre? No Japão não existe
isso. A população vive como se tudo de bom fosse feito para todos eles
desfrutarem.
No nosso hotel chique dormíamos no tatami. No meio da
noite acordei com um terremoto sacudindo o quarto. Quando a gente acorda não
tem exata consciência do que está acontecendo. Pensei que ainda estivesse
dormindo na parte de cima do beliche, em São Paulo, e quis saber quem estava
sacudindo o meu beliche. Demorei um pouco até perceber que estava dormindo num
tatami, em Kyoto, e no café da manhã, o assunto foi o abalo sísmico. Foi o meu
primeiro contato com o terremoto. Passaria a ser periódico. É difícil você
passar seis meses no Japão sem sentir algum terremoto. Você se debruça num
balcão, e o balcão treme. As portas começam a soltar um barulhinho, como se
alguém estivesse segurando a maçaneta e fazendo a porta inteira vibrar contra a
parede. Felizmente nesses 9 anos e meio que passei lá, nunca passei por um
terremoto que derrubasse as coisas das estantes, ou coisa pior.
8 - Sincronicidade - As coincidências da vida
Nesse período do estudo da língua japonesa
aconteceu uma coincidência muito interessante envolvendo três amigos: Masako Komori,
Niími-sam e Luiz Kamogawa.
Masako, eu conheci num ônibus, em São Paulo. Eu
tinha a mania de quando encontrar algum descendente de japonês, falar alguma
coisa em japonês. Desta vez eu estava num ônibus, com Masako sentada ao meu
lado. "Nanji deská" (que horas são?) - perguntei. "Ô... Você
fala japonês!" - ela falou com um sotaque japonês bem forte, que mostrava
que ela era japonesa de verdade. Aí falei a ela que eu estava tentando a bolsa
do Monbushô (agora é Monbu-kagaku-shô, o Ministério da Cultura japonês), para estudar
no Japão. Nunca vi uma japonesa tão comunicativa. Quando passamos pela catraca,
o cobrador vestia uma camisa toda escrita 平和, paz em japonês. Aí falei
a ela que na camisa do cobrador estava escrito paz. "Puxa! Você sabe ler
kanjis!", ela se admirou. Depois que fui ver que no Japão basta você falar
"arigatô-" (obrigado) para eles elogiarem muito sua proficiência em
japonês. Quando eu ia descer do ônibus, ela me deu o telefone dela. Achei muito
singular. Nunca tinha sabido de um caso em que você acaba de conhecer uma
mulher no ônibus, e ela já lhe dá o número do telefone. Masako era um tanto mais
velha que eu, não tinha clima de namoro.
Aí passamos a nos comunicar, ela me levou pro
hotel Osaka, na Av. Liberdade, e me apresentou à gerente do restaurante, uma japonesa
bonita. Todas simpáticas e atenciosas, como é regra do povo japonês. Lembro até
do nome do restaurante: Ajisai (hortênsia). Me apresentou às comidas japonesas,
explicou quais eram as mais baratas. Providenciou o sushi, que combinei com mucunzá
para comemorar o fim do meu mestrado na USP, foi uma amigona mesmo. Ela dizia
que estava desempregada, mas não mostrava desânimo nenhum. Dizia que precisava
estudar para prestar concursos, toda disposta.
Já Niími-sam era o dono do restaurante White
Bear, do Kaikan, o nosso dormitório no Japão. Gordo bonachão, gostava de
conversar com os estudantes, o que não é comum entre os japoneses. Sempre que a
gente saía, perguntava onde a gente ia, e quando voltávamos com compras,
perguntava o que tínhamos comprado. Isso me incomodava um pouco, até que mais
tarde um colega japonês me explicou que perguntar onde você vai é simplesmente
um cumprimento japonês. Basta que você responda "Chotto soko madê" (vou
até ali), e a comunicação está completa.
Luiz Kamogawa era um bolsista do Mombushô (a
maioria dos bolsistas do Mombushô não era descendente de japonês), vindo de
Curitiba para fazer o doutorado em represas. Conheci ele no restaurante
universitário (o Seikyo), e passei a ajudar a digitar a tese dele em japonês,
para avançar mais meu conhecimento. A gente ia para o centro de computação
(lembre-se que isso foi em 1983, começo de 1984, quando o computador ainda não
era encontrado em qualquer sala) para digitar. Eu digitava enquanto ele avançava
escrevendo. Quando eu não conhecia algum kanji, deixava uma marca para
perguntar a ele depois. Mais uma pessoa adorável, tranquilo e inteligente. Foi
com a mulher e os dois filhos, e já estava há três anos no Japão. Para mim,
parecia uma eternidade, mas ele me dizia que eu ficaria muito mais tempo. Eu
ria, mas acabei ficando nove anos e meio. Os filhos tiveram problema com a língua,
quando chegaram, mas logo logo aprenderam o japonês e já não falavam mais em
português. Quando voltaram ao Brasil, se deu o inverso.
Me lembro de um dia que a aula no Gengo-Center
terminou mais cedo, e resolvi ir no Centro de Computação ajudar Luiz. Cheguei lá
e ele estava sozinho, concentrado. Cheguei por trás, sem que ele me visse, e
toquei os ombros dele. Ele levou um susto, e me falou que estava no maior
aperto de tempo, desejando muito que eu aparecesse para fazer a digitação no
lugar dele, embora achasse isso impossível. Como o desejo se realizou, ele me
comparou a um anjo enviado em missão de socorro. Essas coincidências me fazer
sentir que estou no fluxo normal da natureza, e me deixam bem. Pois uma muito
mais interessante estava para acontecer.
Um dia, quando voltei pro Kaikan, Niími-sam veio
ao meu encontro com uma carta de Masako na mão. O envelope estava aberto. Fiquei
revoltado. Perguntar todo dia aonde eu vou, tudo bem, mas abrir minha
correspondência! Falei a ele que no Brasil era uma grande falta de educação
abrir as cartas dos outros. Só que a carta não era minha, era endereçada a ele!
O governo japonês tinha aberto um programa para
encontrar os parentes japoneses espalhados pelo exterior, principalmente por
causa da segunda guerra mundial. Muitos ficaram na China ou na Coréia. O meu
sogro mesmo nasceu na Coréia, quando o Japão tinha um território lá. Foi para o
Japão quando estava no fim do curso primário, mas como era muito maltratado por
ter nascido na Coréia, acabou desistindo de estudar. Mas muitas famílias que
estavam nesses territórios se separaram, durante a guerra, e nunca mais
reataram contato.
Tinha também os que partiram para o Brasil e perderam o contato
com a família do Japão. Era o caso da mulher de Niími-sam, Tokiko. As irmãs
dela tinham partido para o Japão quando ela era pequena, e nunca mais teve notícias.
Então entrou nesse programa para ver se reencontrava elas, e finalmente chegava
a resposta. Uma tinha se casado com um irmão de Masako, essa mesma que eu
conheci no ônibus em São Paulo, e outra tinha se casado com um parente de Luiz
Kamogawa! Todos unidos na mesma emoção!
Niími-sam estava perplexo! Dizia que eu tinha
ligação com Buda. Convidou a família de Luiz para almoçarmos todos juntos, num
domingo, quando o restaurante fica fechado, só nós. Anos mais tarde Masako
apareceu como bolsista da Jica (Japan International Cooperation Agency), e foi
visitar Niími-sam.
Essas coisas são legais! No livro "Cem dias entre
o céu e o mar", de Amyr Klink, ele conta muitos casos de coincidências assim
incríveis, que parecem indicar que ele está no caminho certo. Mas dificuldades
também aparecem, conforme ele mesmo mostra, que aparecem para serem
transpostas.
O finlandês Laurikainen escreveu o livro "Beyond
the Atom" (Além do átomo) sobre as cartas deixadas por Pauli, o prêmio Nobel
de Física, que mostrou que você não pode ter mais de dois elétrons num mesmo nível
de energia do átomo. Pauli fazia terapia com o grande psicanalista Jung, e os
dois juntos criaram o conceito de sincronicidade, sobre essas coincidências
incríveis da vida. Lembro que quando terminei de ler o livro, lá para 1991, estava no shinkansen (trem bala),
indo de Nagoia para Tóquio. O final do livro dizia que as coincidências tinham
um significado especial que não deveria ser desprezado. Fechei o livro pensando
que deveria emprestá-lo sem falta a Umehara-sam, meu amigo espiritualista.
Umehara tinha vários prédios, e aproveitava o
tempo livre para promover traduções de obras espiritualistas, como a tradução
para o japonês da obra de Alan Kardec. Veio me visitar no Brasil, onde se
encontrou com Chico Xavier, Divaldo Franco e dona Santinha, uma mãe de santo. A
tese de mestrado dele foi sobre as religiões semíticas: Cristianismo, Judaísmo,
Islamismo.
Achei que ele iria gostar muito de ler "Beyond
the Atom", e tirei um cochilo. Quando cheguei na estação de Tóquio, uma
das mais congestionadas do mundo, 11 horas da noite, tomei o metrô para ir para
casa. Teria que fazer a baldeação na segunda estação. Me sentei e minutos
depois vi um japonês, entre muitos outros, lendo um jornal, no lado
diagonalmente oposto ao meu. O jornal tapava a cara dele, e logo eu teria que
descer. Fui até perto dele e fiquei lá em pé. Não tinha certeza se era ele.
Resolvi falar o nome dele em voz alta, como quem fala sozinho. Era ele! "Gildemar,
o que você está fazendo aqui?" "Terminei de ler o livro de
Laurikainen e trouxe para você ler!". Mais uma coincidência que não deveria ser ignorada.
Afinal, a estatística surgiu porque não temos
condição de controlar todos os detalhes. Mas isso não quer dizer que inexista um
motivo para o que acontece em cada partícula do todo. É provável que exista uma
"ressonância metafísica" que faz com que só ocorra com você coisas que
têm a ver com você mesmo. Se um meteoro cair na sua cabeça, é porque ele estava
de olho em você!
O curso de japonês começou do zero. Ensinando cumprimentos, bom dia, boa
tarde, leitura de hiraganá e katakaná, que são as formas de escrita mais
simples do japonês.
A escrita do japonês é feita por meio de três sistemas distintos:
hiraganá (ひらがな) e katakaná (カタカナ), cada um com uns 50 caracteres que representam
sílabas, e kanji (漢字),
ideogramas que representam uma ideia cada, e são em número maior que vinte mil.
Segundo uma pesquisa que fiz, por alto, a partir de amostragens, um japonês
normal sabe ler cerca de 3 mil kanjis, enquanto que um japonês da área de
ciências sociais sabe cerca de 5 mil. Os alunos do ensino fundamental têm que
estudar 2136 kanjis, que são os usados pelos jornais. Quando os jornais
precisam de algum kanji mais raro, escrevem em cima dele sua leitura, usando
pequenos hiraganás.
O kanji é
originário da China, embora a língua chinesa, ao contrário do que se pensa,
seja totalmente diferente da língua japonesa. É como o inglês e o português,
que têm em comum as letras latinas, mas são línguas bastante diversas. Assim
como os termos de áreas específicas em inglês são semelhantes aos do português,
a escrita dos termos específicos em chinês é semelhante à escrita dos correspondentes
em japonês. Mas a gramática é totalmente diferente.
Os chineses só
dispõem dos kanjis, e por isso, para uma criança conseguir escrever uma carta
precisa saber uns dois mil kanjis. Não dá para escrever nos primeiros anos.
Muitos kanjis são de áreas específicas, e não são conhecidos pela maioria dos
japoneses, da mesma forma que são poucos os brasileiros que sabem o que quer
dizer sanca ou acetábulo (palavras da língua portuguesa).
Os japoneses
pegaram alguns kanjis e simplificaram para representar as sílabas da língua
japonesa (que são poucas, comparadas com as da língua portuguesa). Daí surgiram
o katakaná e o hiraganá. Todos os dois sistemas representam as mesmas sílabas,
mas o katakaná é usado para escrever palavras estrangeiras, como nosso nome.
Lembra elementos que compõem os kanjis, e são mais cheios de ângulos (カタカナ). Já o hiraganá é mais usado em terminações
verbais, preposições e conjunções, e provêm da forma cursiva de escrever os
kanjis, por isso são mais arredondados (ひらがな). Um escritor pode escolher escrever em hiraganá ou katakaná uma
palavra normalmente escrita com kanjis, por razões estéticas pessoais. Mas
usando o hiraganá ou katakaná, qualquer criança do primeiro ano primário pode
se expressar e escrever uma carta. Japão, Nihon em japonês, pode ser escrito em
katakaná, ニホン, em hiraganá, にほん, ou em kanji 日本, que é o mais usual. Por que os japoneses não
abdicam dos kanjis, então? Porque como a língua japonesa tem poucos sons,
muitas palavras distintas se pronunciam da mesma forma. Os kanjis que as
compõem é que fazem a diferença. Nihon pode significar Japão, mas também pode
significar dois lápis, duas garrafas. Quanto mais sofisticado fica o seu
vocabulário, mas necessidade dos kanjis você tem para se expressar melhor. E
com os kanjis a ideia entra de uma forma muito mais rápida na memória de quem
lê. Os nomes das pessoas são definidos por kanjis, e não por sons. Se alguém
lhe disser que sabe ler com segurança o nome de um japonês, desconfie dele. Nem
os japoneses sabem. Normalmente você precisa perguntar como se lê o nome de um
japonês, e isso não é motivo de nenhuma vergonha. Assim que cheguei ao Japão
tive dois amigos japoneses com o nome escrito igual: 純一. Mas um deles se chamava Jun-ichi, o responsável
pelos estudantes estrangeiros, e o outro Sumikazu, que tive a alegria de reatar
contato na semana passada, por meio do facebook, depois de 30 anos. A única
maneira de saber qual era a pronúncia correta era perguntando ao próprio. Isso
ocorre porque, em japonês, há muitas possibilidades distintas de leitura para
um dado kanji. Isso sem contar os casos dos kanjis inventados. Conheci uma
mulher que a letra do nome dela tinha sido inventada pela própria mãe. Ninguém
sabia ler.
Quando comecei a estudar japonês no Brasil, sempre ensinado por amigos
que não tinham conhecimento das regras gramaticais, eu não tinha interesse
pelos kanjis. Achava complicado demais. Imaginava que se precisasse ler, algum
dia no Japão, poderia perguntar a algum japonês do lado, que certamente acharia
óbvio que eu, com cara de ocidental, não soubesse ler. E se precisasse
escrever, teria sempre o recurso do hiraganá ao meu dispor.
Mas quando me
inscrevi para a bolsa do Japão, resolvi estudar mais a fundo e fazer o exame de
língua japonesa, embora não fosse necessário para os estudantes da área de
exata. Quem vai com bolsa de exata recebe o curso de língua lá mesmo. Eu achei
que fazendo o exame mostraria mais a minha determinação em ganhar a bolsa.
Apreguei vários papéis com kanjis pela casa, e cheguei a decorar 300 antes ir.
Foi aí que comecei a tomar gosto. Quando fui fazer o exame, no Bunka, Centro
Cultural Japonês, em São Paulo, na Rua São Joaquim pertinho do Colégio
Roosevelt, onde estudei, só tinha eu de não descendente. Aquele montão de
gente, tudo com cara de japonês. Pensei: - Meu Deus! O que foi que eu vim fazer
aqui? Tinha três tipos de provas. Parei na mais fácil e fui o primeiro a
entregar, é claro. A moça simpática do consulado deu risada quando viu que eu
tinha escrito "o dicionário é frio" como sendo o contrário de "o
dicionário é grosso". Dei adeus às esperanças ali mesmo, mas acabei
passando.
Por isso fiquei
desapontado ao ver que, no Japão, eu, que já sabia 300 kanjis, teria que
ter aulas juntamente com pessoas que não sabiam absolutamente nada de japonês.
Depois de alguns dias pedi ao professor para me liberar das aulas. Eu ficaria
em casa assistindo televisão, para aprender mais rápido.
Com 28 anos, eu
nunca tinha tido televisão em minha vida. Quando morava em Serrinha, com meus
pais e irmãos, a televisão era um artigo de luxo. Quando nos mudamos para São
Paulo, passou a ser um motivo de alienação para nós, seis irmãos trabalhando e
mal tendo tempo para estudar para os nossos cursos. Ninguém nunca achou
necessário comprar, e nossos amigos gostavam de ir nos visitar, e ter a certeza
que não encontraria um grupo de pessoas olhando para a telinha. Mas quando
cheguei ao Japão, Carlos da Colômbia, que já estava de volta ao seu país, me
deu a televisão dele de "herança". Eu ouvia direto, como um recurso
efetivo para aprender a língua. Assitia desenhos animados de Doraemon, Paaman,
jogos de adivinhação de palavras (rensoo game), experiências científicas de
coisas cotidianas (try and try), deixava sempre ligado nos diversos cursos de
língua (inglês, francês, espanhol, chinês, coreano, russo) e filmes.
Mas voltando
à minha solicitação de ficar estudando em casa, o professor me disse que ia
pensar no caso. Fiquei no aguardo, mas nada de resposta. Comecei a ficar
irritado e briguei com ele. Era o esquema japonês de dizer "não":
"vou pensar no caso", bem contrário do meu estilo nada político.
Mas pouco a pouco o
ritmo foi ficando mais pesado. A gente tinha que estudar com antecipação o que
ia ser dado no dia seguinte (a isso se chama yoshuu, que é o contrário de
revisão - fukushuu), pois a primeira coisa que nos esperava era uns
"quiz" (foi a primeira vez que tive contato com essa palavra, que no
meu tempo se chamava teste) no computador sobre o que seria ensinado no
dia. Computadores na sala de aula em pleno ano de 1983. Tinha aulas de manhã e
de tarde, e voltando pro Kaikan tinha que fazer os deveres e estudos para o dia
seguinte. Depois caía no sono de cansaço.
No primeiro sábado
me senti mal. Vi o mundo rodar e senti que ia desmaiar durante a aula. Falei
para o professor que "estava desagradável". Chamaram o responsável
pelos alunos estrangeiros, o solícito Jun-ichi Taguchi, e me levaram para a
clínica da Universidade. Lá descansei um pouco e fiquei bem. Comia bem todos os
dias e não ia no banheiro. Não sei onde foi parar tanto arroz. Mas só foi uma
semana. Pior foi me acostumar quando voltei ao Brasil. Um mês de disenteria,
pois nada dava certo. Eta paiszinho que gosta de uma complicação!...
6 - Continuação de "O primeiro dia no Curso de Línguas"
O ponto que a gente desce se chama Meidai-mae. Quer dizer "em frente à Universidade de Nagoya". Meidai é a abreviatura do nome da Universidade: Nagoya Daigaku (Daigáku é universidade) e Mei é a maneira abreviada de ler o "Na" de Nagoya. O brasileiro deve achar estranho que a forma abreviada é mais comprida, mas, estudando japonês logo logo você sai achando lógico. "Mae" quer dizer "em frente", "antes". Vão aprendendo. Alguém nos conduziu até o Gengou Center (pronuncie guêngoo cêntaa, com acento nas primeiras sílabas, mas com as finais longas. É o Centro de Línguas). Tenho quase certeza que foi Taguchi, o responsável pelos estudantes estrangeiros da Universidade de Nagoya, que namorava, ou era noivo de, uma japonesa que já viveu no Brasil.
No Gengou Center, a Faculdade de Letras, era onde a gente ia passar seis meses estudando japonês. O campus simples e limpo, como tudo no Japão. Como cheguei no Japão no dia 11 de outubro de 1983, era outono, e começava a esfriar. As folhas se amareleciam. A vegetação muito diferente da nossa, muito à base de pinheiros.
Muito bem. Primeiro nos levaram para fazer um teste sobre nossa habilidade de aprender uma língua diferente, que eu já sabia que era a própria gramática da língua japonesa. Mas eu era o único que tinha estudado japonês antes. Na minha sala tinha Garcia, do México, Pascale, da França, Ryszard, da Polônia, acho que era Minmin, da Birmânia (hoje Miyanmar), Morris, da Austrália, e eu. Somente sete alunos. Talvez tivesse mais um, que não lembro. Tínhamos três aulas de manhã, 9-12h, eu acho, e duas à tarde, 13-15h. Cada aula era um professor diferente. Nos ensinavam em inglês, e pra isso eu não estava preparado. Recorria então a Garcia, e, mais frequentemente, a Pascale Barbier, que sentava do meu lado, pois nessa época meu francês estava melhor que o inglês. Tinha estudado francês desde o primeiro ano ginasial em Serrinha, e além disso estudei todo um curso que vinha em fascículos nas bancas de revista, acompanhado de discos com toda a conversação. Mas as aulas em inglês do Gengou Center tiveram a vantagem de me propciar um curso duplo. Aprendia inglês e japonês ao mesmo tempo.
Nos deram o livro texto, em japonês e em inglês, com ideogramas e tudo, e as fitas cassetes junto com um gravador, para estudarmos no Kaikan. Nos levaram para conhecer o campus, especialmente o refeitório, que chamamos de Seikyo (Sêekyoo, acento na primeira sílaba e a última longa), que é a abreviação para Cooperativa (Seikatsu Kyodo Kumiai). Fomos lá os alunos com todos os professores.
-Sensei ga takusam arimasu, né? - eu falei, fazendo o possível para praticar meu japonês, que eu queria tanto aprender. Os professores caíram na risada. Traduzindo literalmente quer dizer que tem muitos professores, mas era uma expressão errada desde o início por vários motivos. Fujiwahara-sensei (homem) (sensei quer dizer professor) era o diretor do Gengou Center, Fujioka-sensei era uma mulher de uns 60 anos e adorava beber, o que era estranho para um brasileiro, Kato-sensei (mulher) foi quem me ensinou os termos específicos da área de Física. Além disso tinha Kinjo-sensei (mulher), Tsubota-sensei (homem), Kanda-sensei (mulher), que eu me lembre. Todos adoráveis. 5 - O primeiro dia no Curso de Línguas.
No primeiro dia, nem lembro quem me acordou. Com a diferença de 12 horas de fuso horário, sem ter ainda um despertador, com certeza não acordei sozinho. O ponto de ônibus ficava logo em frente ao Kaikan. Fiquei impressionado com a tabela com o horário exato que todos os ônibus passavam no ponto. Os ônibus andavam bem devagar, para os padrões brasileiros, mas também raramente atrasavam um minuto para passar em cada ponto de ônibus. No ano passado vi que, em Paris, além do horário dos ônibus, tem também o mapa com o trajeto de cada linha. Que maravilha! Para onde será que vai o imposto que consome mais da metade do que a gente ganha aqui no Brasil, né?
Cada ponto de ônibus tem o seu nome. O nome do ponto em frente ao Kaikan era Fujinari doori san-choome. Nome grande. Toori quer dizer rua, que vira doori por eufonia. Fujinari é o nome da rua do Kaikan. San é o número 3, e choome indica mais ou menos a região.
Os ônibus são também menores do que os brasileiros, de aparência simples, nada de luxuoso, mas muito confortáveis. Os motoristas sempre usam luvas brancas, e param obrigatoriamente em todos os pontos. Ninguém precisa levantar o braço, nem sair correndo atrás ou indo pro meio da rua. Não tem cobrador. Pegamos um papelzinho quando entramos, que indica a entrada, e entregamos ao motorista com o dinheiro, na hora de descer. O preço é proporcional ao percurso. Em 1991 acho que a passagem custava 160 ienes, que dá uns R$ 3,20 em moedas de hoje. Uma voz feminina gravada vai anunciando o nome do próximo ponto. O motorista também tem um microfone discreto, onde ele avisa alguma coisa. Tudo muito simples, que você nem percebe que está num ônibus com todos esses requintes. No inverno os assentos são levemente aquecidos. No ano passado, no metrô em Paris, dois japoneses entraram e se sentaram bem na minha frente. Um deles se assustou e levantou logo, dizendo pro outro que tinha pensado que o assento estava molhado, por causa do frio do inverno. Ele estava mal acostumado com o conforto japonês.
4 - O Kaikan
Este é o quarto capítulo contando minha experiência no Japão. Pra quem ainda não leu, os anteriores estão lá embaixo.
Se eu passasse direto da estação de Nagoya, não teria nenhum telefone para ligar, nem sei como conseguiria voltar. Ainda bem que não tive nenhum colapso improvável. Desci na plataforma, e lá estava Nozaki-sam, que já sacou de cara que eu deveria ser o estudante estrangeiro vindo do Brasil. Até reencontrar Nozaki-sam se passariam ainda seis meses, que era o tempo que eu tinha para o curso de língua japonesa. Tinha mais alguém com ele, e ele me perguntou em inglês se eu era Mr. Santos. Eu queria praticar japonês ao máximo, e enquanto ele dirigia pelas ruas de Nagoya, eu ia olhando as placas das lojas, escritas em kanji (ideogramas de origem chinesa).
- Como lê aquilo ali? Kusuri-kyoku?
- No. It's yakkyoku. Drugstore.
- Mas farmácia não é kusuri-ya?
- Mas usa mais yakkyoku.
E assim eu ia perturbando o tempo todo, com a ingenuidade dos jovens.
Ele me deixou no Nagoya Daigaku Ryugakusei Kaikan (Residência dos Estudantes Estrangeiros da Universidade de Nagoya), que a gente chamava carinhosamente de Kaikan. O encarregado dos estudantes estrangeiros (na Universidade de Nagoya tinha uns 400), Taguchi, convocou logo os brasileiros do Kaikan para me apresentar. Tadeu, era de Vitória, e fazia mestrado em Engenharia Civil. Me deu as informações básicas e tirou minhas dúvidas. Foi um grande amigo, e até hoje trocamos informações pelo face. Tinha também Mário Tanaka, de Brasília, que trabalhava no Banco do Brasil. Quando ele voltou para o Brasil encontrou no elevador meu irmão mais velho, que também trabalhava no Banco do Brasil em Brasília, e só de olhar a cara parecida, perguntou de chofre: Você é irmão de Gildemar, não é?
Tinha também Édson Kakihara, que voltou para o Brasil seis meses depois da minha chegada, e me ajudou a fazer o primeiro vídeo documentando minha vida lá, para mandar para o Brasil. Era o tempo das fitas de vídeo beta ou VHS, de problemas de compatibilidade do PAL-M, e o escambau.
O Kaikan é um prédio de três andares, bem espichado horizontalmente. No térreo tinha um restaurante, o White Bear, mesa de ping-pong, sala para ler jornais ou assistir televisão, e o escritório do Kaikan. No primeiro andar tinha o salão de festas, onde o pessoal se reunia para assistir TV, com um orgãozinho elétrico, e vários quartos para os estudantes.
No segundo andar, o mais alto, era basicamente quartos. Tinha o banheiro coletivo, os chuveiros, duas máquinas de lavar roupa, e uma washitsu, salinha estilo japonês, com tatami, onde os alunos interessados tinham aulas de cerimônia do chá, ou de shodô (caligrafia japonesa). Um quarto desse andar era reservado para as moças. Eu morei no quarto 311, sam ichi ichi, em japonês. Para os amigos não esquecerem, eu dizia Gildemar-sam ii, que quer dizer Gildemar é bom (ii = bom). Sam = 3, i = 1, i =1.
Fiquei decepcionado ao encontrar uma cama ocidental no meu quarto, sem tatami nenhum. Esperava viver no estilo japonês, dormindo no tatami. Desmontei a cama e deixei o colchão em cima do carpete.
Talvez o quarto medisse 3 por 4 metros. Acho que era mais estreito. Minha janela dava para a rua, com uma escrivaninha e uma luminária. No lado esquerdo ficavam os armários.
Mulheres voluntárias do Lions, que falavam muito bem inglês, me levaram para abrir a conta no banco e tirar minha carteira de estrangeiro. Com o visto de bolsista do governo japonês, nosso status era muito respeitado.
Tadeu me apresentou ao que nós chamávamos de a máfia latina: Miguel e Carlos, do México, Maria Fernanda, da Colômbia, que chegou na mesma leva que eu, e hoje é minha amiga no face, Vítor, da Bolívia, Juliana, da Costa Rica, Carola, da Itália. A pronúncia do nome dela em italiano é Cárola, mas ela teve que aturar a gente chamando ela de Caróla o tempo todo. Os hispânicos falavam em espanhol, e nós falávamos em português, e todos se entendiam. Só Carola que falava em inglês, embora entendesse tudo que a gente dizia. Ela era muito paciente comigo, que não entendia quase nada de inglês. Tadeu traduzia.
Meu inglês era muito fraco. Em Serrinha, a gente aprendia francês desde o primeiro ano do ginásio, e inglês a partir do segundo. Quando fomos para São Paulo, o nível de inglês deles era muito melhor que o nosso, em Serrinha, mas em contrapartida eles só viam francês a partir do colegial, o que me deixava com quatro anos de vantagem sobre eles. Meu irmão fez curso de inglês nessas escolas que tem por aí, para suprir, e eu estudei muito para conseguir passar. O nosso professor do Colégio Roosevelt só falava inglês na sala de aula. Nunca ouvi ele falar em português. Era muito bom. Na faculdade, a partir do terceiro ano, os livros eram tudo em inglês. Eu só olhava as fórmulas e tentava entender. Um dia, achei uma equação que devia estar errada, e fui perguntar ao melhor aluno da turma. Ele leu o texto com cuidado, e me mostrou que estava escrito que aquela equação não era correta.
-Você precisa ler o texto. Não pode só ficar olhando as equações - falou amigavelmente.
Passei a ler os textos também, e peguei fluência em leitura, mas a conversação estava zero. Entender o que os outros falavam, então, era um problema. Principalmente os nativos: americanos, ingleses, australianos. Os africanos tinham a pronúncia mais clara para os meus padrões. Para mim, o modo dos japoneses pronunciarem palavras inglesas resultava em conflito. Por exemplo, coragem em inglês é courage. Os japoneses pronunciavam cáriji, aproximando mais para a pronúncia inglesa, e eu pronunciava côurage, aproximando para a grafia. Não dava para um entender o outro. Mas eu estava pouco ligando para o inglês. Minha geração estudantil abominava a subserviência cultural aos americanos, e eu queria aprender era o japonês. Mas fiquei impressionado em ver como os estudantes das várias nacionalidades tomavam como fato pacífico o inglês ser a língua comum universal. Isso não me agradava. Os estudantes estrangeiros se dividiam em dois grandes grupos: os chineses e coreanos (que somados davam mais da metade dos estudantes estrangeiros), que não usavam o inglês, e o resto do mundo, que usava o inglês para se comunicar. Europeus, filipinos, africanos, panamericanos.
As aulas de japonês começaram já no dia seguinte. Não tive tempo para descansar nem me acostumar ao fuso horário. Tomamos o ônibus em frente ao Kaikan, e fomos para a Universidade de Nagoya.
3 - Chegando ao Japão
Danilo escreveu dizendo que está ansioso para saber a continuação da minha viagem ao Japão. Isso me estimulou a continuar a história, que está parada desde o início do semestre. Vamos aproveitar antes que as férias se acabem, e ando muito ocupado estudando Física Matemática!
Bem, este é o terceiro capítulo contando minha experiência no Japão. Pra quem ainda não leu, os dois primeiros estão lá embaixo.
Eu tinha esquecido de dizer que, na hora de escrever o meu plano de trabalho, eu não sabia o que botar. Tinha ouvido Oscar Eboli falar de sólitons, na nossa pós graduação, e achei o assunto fascinante. Além disso ouvia falar que Ivan Ventura trabalhava com isso, e que ele era gente muito boa. O fato de ser gente boa pesava muito. Então para escrever o plano de trabalho, fui até a biblioteca do Instituto de Física, peguei o livro que tinha lá sobre sólitons, e simplesmente copiei o índice. Lembrando disso agora, me parece tão ingênuo. O formulário de inscrição da bolsa pedia que citasse o nome de professores que trabalham nessa área no Japão. Nas referências desse livro sobre sólitons havia os nomes de dois japoneses. Wadachi, de Tóquio, e Taniuchi, de Nagoya. Coloquei o nome dos dois.
Alguns meses depois veio uma correspondência de Taniuchi dizendo que queria que eu especificasse melhor meu plano de trabalho. Ele não dizia, mas somente lendo o índice de um livro não dava para ele deduzir que pesquisa eu queria fazer. Pedi ajuda a Ivan Ventura que reescreveu todo o projeto para mim. Iria aprender sobre sólitons para, voltando ao Brasil, ajudar na pesquisa dele. Acho que foi graças a Ivan que eu ganhei essa bolsa. Só agora que estou percebendo que deveria ter voltado lá para agradecer a ele. E isso nunca me passou pela cabeça! Nós, brasileiros, temos a fama no exterior de nunca escrever para agradecer nada. Preciso remediar isso.
Fiz o passaporte, e o próprio consulado do Japão se encarregou de pegar meu visto para os Estados Unidos, pois o vôo passaria em Nova Iorque. Nos reunimos uma vez lá em casa, os 5 bolsistas (já não era mais a quitchinete). Um deles era físico também, Chubaci, que hoje é professor da USP. Muito comunicativo ele. Tinha uma menina filha de holandeses que era tida como gênia na Faculdade de Arquitetura, tinha um mestiço de japonês muito simpático, e os outros não lembro mais.
No dia da viagem, meu irmão me levou até o aeroporto de Guarulhos. Eu estava mais nervoso com medo de estar esquecendo alguma coisa importante, como passaporte, passagem, dólares, do que pela viagem em si. Também tinha medo de não entender as mudanças de avião, quando falassem em inglês, mas como tinha os outros, que já tinham experiência no exterior, fiquei mais tranquilo. Íamos de classe executiva na JAL!
Em Nova Iorque tivemos umas quatro horas de espera, e alguns aproveitaram para passear pela cidade. Eu fiquei com medo de acontecer algo e perder o vôo, e fiquei no aeroporto mesmo.
De Nova Iorque para Tóquio tinha um executivo japonês do meu lado, que teve a paciência de aturar meu treinamento de inglês por boa parte da viagem. Aquela simpatia típica dos japoneses. As aeromoças japonesas se sentavam parecendo que uma buscava se harmonizar com a outra. Tudo era cheio de graça.
O japonês nos mostrou quando o Japão começou a ser avistado. O monte Fuji, Tóquio lá embaixo. Que emoção. Antes de sair do Brasil perguntei a meu amigo Yutaka o que me decepcionaria no Japão, para eu não ficar muito chocado. Ele disse que seria o fato de o Japão estar muito ocidentalizado. Não era mais aquela mundo de gueixas e samurais. Mas quando saí no aeroporto de lá, via muitas mulheres lindas de quimonos elegantes. O pessoal da JICA (Japan International Cooperation Agency - Agência de Cooperação Internacional do Japão) nos conduziu ao trem bala. Eu aproveitava para falar o japonês que podia. Normalmente eles vinham falando em inglês, mas dava para entender, pois eles percebiam minhas restrições. Me avisaram que o trem bala chegaria em Nagoya exatamente às 13:01h (pontualidade nipônica). Para eu não me atrasar na saída, pois poderia ir parar em Osaka, e haveria um professor me esperando em Nagoya.
A viagem me impressionava. Pela janela via as casinhas japonesas, tão diferentes das nossas, com aqueles telhados de cerâmica colorida, muitos azuis e verdes, e quase nenhum da cor das nossas telhas. Exatamente a 13:01 h o trem parou. Só tinha mais uma brasileira comigo, uma nissei que ficou em Shizuoka. Eu estava sozinho, e por isso me preparei bem antes das 13:01 h, para não me extraviar do outro lado do mundo.
No Japão se pede desculpas
O presidente da empresa do reator que vazou radioatividade em Fukushima foi até lá, no abrigo onde o povo se encontra, e se curvou até o chão para pedir desculpas. As pessoas reclamavam: E agora, sem trabalho, como é que nós vamos fazer?
Já viu alguém pedir desculpas, no Brasil? A culpa é sempre nossa, do contribuinte, do cliente. Vejam a foto:
O Vídeo mais dramático do Tsunami de 11/03/11
Este vídeo é o mais impressionante que eu ja vi. Na cidade de Minami Sanrikuchou, na província de Miyagi. Você vê como a onda entrou longe, e o povo correndo da onda que quase toca os pés. Mas diz o comentário que todos se salvaram.
Vejam só que imagem do Japão muito interessante, no you tube:
2 – A viagem
1 – Por que Japão?
Tentar uma bolsa de estudo para o Japão foi uma jogada onde eu não tinha nada a perder. Se não ganhasse, continuaria minha vidinha igual. Nada a menos. Mas, se ganhasse, seria como ganhar na loteria, realizar o grande sonho de minha vida de conhecer um país diferente, e, ainda por cima, o Japão, o país dos meus sonhos. Nenhuma tensão envolvida. O problema foi depois que ganhei a bolsa.
Como acontece sempre, até hoje, o Japão envia bolsistas brasileiros duas vezes por ano: em abril e em outubro. O consulado me assegurou que minha bolsa seria em abril. Aproveitei e pedi licença sem vencimento ao Banerj, onde trabalhava da meia noite às 6 da manhã. Licença sem vencimentos soa parecendo licença sem prazo para terminar, mas na verdade quer dizer licença sem ganhar salário (vencimentos). O Departamento de Pessoal (a palavra hoje é RH) nunca tinha visto essa concessão, e tiveram que estudar a fundo para saber como era o processo. Imagino que o fato de meu irmão, Gilmar Carneiro, ser o diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo tenha facilitado o processo.
Ganhei a licença a partir de abril. Depois disso o consulado comunicou que talvez a minha ida ficasse para outubro. Aí que doeu. Eu vivia do meu salário. Se ficasse no Brasil sem bolsa e sem vencimento, como viveria nos seis meses de abril a outubro? Cada vez que telefonava para o consulado, a nuca doía de tanta tensão. Era desagradável pressionar o consulado por uma coisa que era tão importante para mim, mas ao mesmo tempo não podia me tornar num fardo para meus irmãos. Daí que resolvi pedir prorrogação da licença do Banco. Eles preferiram cancelar e aguardar, pois se a bolsa furasse, eu não seria prejudicado. Foram muito legais. O resultado foi que acabei indo em outubro. Dia 9 de outubro de 1983, com 28 aninhos.
O Japão estava muito distante da minha infância em Serrinha, interior da Bahia, pertinho de Feira de Santana, como Jô diria que Bira diria. Meu pai sapateiro, com sete filhos para criar (eu sou o sexto), a muito custo conseguia sustentar a família. Cada filho que terminava o ginásio viajava para São Paulo, onde criamos uma república de irmãos, uma quitchinete com três beliches para os seis (o mais velho teve outro rumo). Todos trabalhando, vivendo do nosso dinheiro, e estudando à noite. Tinha a caixinha para as despesas. Se as despesas totais fossem metade da soma do salário de todos, então cada um colaborava com metade do seu salário. Ou seja, cada um pagava a mesma porcentagem. Quem ganhava mais colaborava com mais, e quem ganhava menos (como eu) colaborava com menos.
Sair direto de Serrinha para a maior cidade da América do Sul foi o maior choque cultural que já passei. Foi pior que chegar ao Japão. Gostava de andar de ônibus só pela alegria de poder andar de carro. Tinha 16 anos e era office-boy. Quando via algum japonês na rua chegava em casa e contava aos meus irmãos. " – Um dia você vai acabar cansando. São Paulo está cheio deles "– me respondiam.
Aí eu fui estudar no Colégio Presidente Roosevelt, escola pública que fica na Liberdade, o bairro japonês de São Paulo. 90% dos colegas eram descendentes de japoneses e começaram a me ensinar a língua. Gosto muito de línguas estrangeiras, e o que quer que me ensinassem era lucro. O problema é que a gramática japonesa é muito diferente da nossa, e os japoneses que aprendem a falar em casa não sabem nada de gramática. Gramática é complicação da língua portuguesa, eles diziam. Como resultado, toda frase que eu construía eles diziam que estava errada. Isso serviu pra me mostrar a importância de se estudar gramática na escola.
Depois de uns anos, uma nissei (filha de japoneses) maravilhosa chamada Quié veio morar na nossa república. Chegou a ter 9 pessoas em nossa quitchinete. E ainda tinha um piano velho na passagem para os beliches. A gente não tinha tempo de fazer a faxina, e nas dobras do colchão ficava cheio das pulgas que a gente coletava nos ônibus.
Pois bem, Quié passou a me dar aulas de japonês todo domingo. Resolvemos pesquisar como era a gramática. Eu como carne: Watashi wa niku wo tabemasu. Eu leio o livro: Watashi wa hon wo yomimasu. Então a ordem era sujeito, objeto e verbo, com a partícula wo entre o objeto e o verbo. Aos poucos fomos chegando lá.
Aprendia japonês só pelo prazer de aprender. Imaginava que aprender uma língua tão diferente deveria estimular o raciocínio. Viajar ao exterior era uma coisa tão distante da minha realidade quanto um conto de fadas. Quanto mais ir até o Japão. Pensava em estudar japonês até o fim da vida, nem que nunca fosse lá. Se conseguisse me comunicar, já estaria satisfeito.
Quando estava para terminar meu mestrado na USP, orientado pelo competente Humberto França, li no Boletim do Instituto de Física um comunicado informando que o consulado do Japão estava ofertando bolsas de estudos. Na verdade todo ano o governo japonês oferta essas bolsas, e continua ofertando. O problema é que pouca gente sabe disso. Resolvi me inscrever. Não tinha nada a perder. Se não fosse, iria fazer doutorado em sólitons com Ivan Ventura, um professor querido por todos.
Pois bem. Me inscrevi. Quem se inscreve pra ciências exatas não precisa saber falar japonês. Lá eles ensinam. Mas como eu sabia um pouquinho, quis tirar partido disso e pedi para fazer a prova de língua. Rapaz, no dia da prova só tinha japoneses! Eu era o único "estrangeiro". Centenas de japoneses para umas 4 ou 5 vagas no estado de São Paulo. A prova tinha três níveis, mas eu não compreendia nem o mais fácil. A fiscal da prova deu risada quando viu que eu tinha escrito "O dicionário é frio" como o contrário de "O dicionário é grosso". Mas mesmo com esse nível fui aprovado. O que contava mais era o plano de trabalho, o que você queria fazer no Japão. Não sei como, mas fui aprovado. Dos outros quatro que passaram, ninguém falava nada de japonês. Mas isso era apenas o ponto de partida da tensão emocional.
Depois de uns anos, uma nissei (filha de japoneses) maravilhosa chamada Quié veio morar na nossa república. Chegou a ter 9 pessoas em nossa quitchinete. E ainda tinha um piano velho na passagem para os beliches. A gente não tinha tempo de fazer a faxina, e nas dobras do colchão ficava cheio das pulgas que a gente coletava nos ônibus.
Pois bem, Quié passou a me dar aulas de japonês todo domingo. Resolvemos pesquisar como era a gramática. Eu como carne: Watashi wa niku wo tabemasu. Eu leio o livro: Watashi wa hon wo yomimasu. Então a ordem era sujeito, objeto e verbo, com a partícula wo entre o objeto e o verbo. Aos poucos fomos chegando lá.
Aprendia japonês só pelo prazer de aprender. Imaginava que aprender uma língua tão diferente deveria estimular o raciocínio. Viajar ao exterior era uma coisa tão distante da minha realidade quanto um conto de fadas. Quanto mais ir até o Japão. Pensava em estudar japonês até o fim da vida, nem que nunca fosse lá. Se conseguisse me comunicar, já estaria satisfeito.
Quando estava para terminar meu mestrado na USP, orientado pelo competente Humberto França, li no Boletim do Instituto de Física um comunicado informando que o consulado do Japão estava ofertando bolsas de estudos. Na verdade todo ano o governo japonês oferta essas bolsas, e continua ofertando. O problema é que pouca gente sabe disso. Resolvi me inscrever. Não tinha nada a perder. Se não fosse, iria fazer doutorado em sólitons com Ivan Ventura, um professor querido por todos.
Pois bem. Me inscrevi. Quem se inscreve pra ciências exatas não precisa saber falar japonês. Lá eles ensinam. Mas como eu sabia um pouquinho, quis tirar partido disso e pedi para fazer a prova de língua. Rapaz, no dia da prova só tinha japoneses! Eu era o único "estrangeiro". Centenas de japoneses para umas 4 ou 5 vagas no estado de São Paulo. A prova tinha três níveis, mas eu não compreendia nem o mais fácil. A fiscal da prova deu risada quando viu que eu tinha escrito "O dicionário é frio" como o contrário de "O dicionário é grosso". Mas mesmo com esse nível fui aprovado. O que contava mais era o plano de trabalho, o que você queria fazer no Japão. Não sei como, mas fui aprovado. Dos outros quatro que passaram, ninguém falava nada de japonês. Mas isso era apenas o ponto de partida da tensão emocional.
"Sair direto de Serrinha para a maior cidade da América do Sul foi o maior choque cultural que já passei. Foi pior que chegar ao Japão."
ResponderExcluirSão Paulo a terra de todas a tribos.
Gildemar estou acompanhando sua história. Ela serve de inspiração para aqueles que como eu, pretendem conhecer outras culturas.
ResponderExcluirEstou aguardando ansioso a continuação da narrativa.
"Professor", irei trabalhar um tempo comseu irmão em Serrinha e, passando pela net vi seu blog e suas memórias da Terra do Sol Nascente, acho que deveria virar um livro, mesmo que um e-book. Me deu vontade de escrever a mesma coisa sobre meus quase 5 anos em Brasilia, muitas e muitas histórias mas, a superação é a maior delas
ResponderExcluirUm abraço
Conta mais sobre suas memórias do Japão. Além de ter uma história inspiradora, sua narração é muito bem construída e divertida.
ResponderExcluirObrigada por postar mais. Achei que você não iria nem ligar para o comentário!
ResponderExcluirVocê poderia contar um pouco como foi sua experiência com os seus orientadores de mestrado (e doutorado?) lá no japão? A dinâmica é muito diferente da nossa?
Sei que é muita intromissão pedir isso, mas curiosidade de leitor é assim mesmo.
Conheci há pouco o seu blog professor, ao pesquisar algumas coisas de Física 4 na internet, e estou gostando muito!
ResponderExcluirSou aluna do bacharelado de física aqui na usp, e às vezes as figuras dos professores me assusta um pouco, não no aspecto negativo, é mais no sentido de que tenho receio de não ser adequada para a física.
Eu gosto muito de ler ou escutar como foi a experiência dos professores em fazer a graduação etc. Já procurei blogs de estudantes de física que de repente compartilham isso mas não encontrei.
Muito obrigada por compartilhar suas histórias conosco!
Obrigado por suas palavras estimulantes, Karina. E eu nem falo tanto sobre minha vida como aluno do IFUSP, nessas memórias. Vou postar então um discurso que fiz como paraninfo, com as conclusões tiradas nas durezas da vida de aluno. Espero que você leia e goste.
ResponderExcluirKarina, leia a nova página que criei: "Aos formandos em Física"
ResponderExcluir