terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Liberdade em queda

   O edifício Liberdade, que desmoronou no Rio, arrastando consigo o edifício Colombo, foi seguido da queda de Danielle Winits e Thiago Fragoso. O cabo que sustentava os dois no vôo sobre a platéia, na peça Xanadu, se rompeu. Os dois eventos mostram a importância do engenheiro na sociedade. 
   Espero que a queda do edifício Liberdade sobre o edifício Colombo não tenha nenhum significado metafórico. Alguma coisa como a liberdade sumindo do mundo e arrastando as Américas para o colapso.
  No Brasil, a tendência é criar leis que prendam, em vez de investir primeiro na educação.  Quem der tapa no filho vai para a cadeia, por exemplo. É preciso considerar que o castigo corporal é uma tradição que vem de muitos anos, e que precisa primeiro ser trabalhada nas escolas, criando uma consciência duradoura, num investimento sadio.  Em contrapartida as cadeias seguem abarrotadas, numa agressão social mais revoltante que os tapas nas crianças. Juízes e deputados seguem aumentando seus salários como bem querem, imputando altos impostos e desviando para seus bolsos, livres de cadeias e punições. 
  Demitiram soldados que estavam fazendo obscenidades com a estátua de uma vaca, em Florianópolis. Outra questão cultural. Os soldados não estavam fazendo mal a ninguém. Estavam se divertindo, fingindo que estavam trepando com a vaca e tirando fotos. Por que o sexo nos incomoda tanto?
  A França, o país da Liberdade, Igualdade, Fraternidade, está andando por um caminho esquisito. Proibiu as mulheres de usarem burcas, independente de elas quererem ou não. E agora vai prender quem disser que um genocídio, assim decretado por um órgão internacional, não foi genocídio. 
  Precisamos nos concentrar no que é essencial:  O ser humano não pode fazer mal a outro. Na medida do possível, pois, para mim, pagar altos impostos a um governo que não responde com melhorias sociais é um mal que me fazem. Mas todos precisam pagar impostos para manter a máquina da sociedade em funcionamento. Se o mal não é feito, vamos nos alegrar e deixar que os outros sejam felizes. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Viva o sotaque

   Fui em Recife na quinta (05/01/12) e voltei na quinta mesmo. Fui tirar o visto para ir ao Japão. Acordei às 3 da madrugada, pois o avião saía às 5:40. Quando passei pelo bambuzal, já chegando no 2 de Julho, lembrei que tinha esquecido o passaporte. Liguei correndo pra minha filha, que trouxe de táxi.  Que sufoco. Ir até Recife tirar visto e esquecer o passaporte é demais.
   No hotel liguei a televisão na esperança de ouvir novos sotaques, que já tinha encontrado no táxi e no aeroporto, mas em vão. Se fechasse os olhos, parecia que estava ouvindo o Bahia em Revista. Todo mundo tentando padronizar a maneira de falar pelo Sul Maravilha.  Até aquela maneira estranha de falar tambéim, em vez de tamb˜ein. Nem William Waak não fala tambéim.
   Olhei para ver se era William Bonner que estava anunciando o Jornal do Meio Dia de Recife.  (Em Serrinha a gente fala "de Recife", não "do Recife"). Não era. Era um negro provavelmente pernambucano. Era impressionante. Até o timbre era igual ao de William Bonner!  Lembrei que uma vez um japonês, no Japão, tinha me perguntado porque os apresentadores de televisão de todo o Brasil falavam exatamente igual. Antes de ir ao Japão eu nunca tinha possuído uma televisão, e não soube responder. Mas fiquei envergonhado.
   Quando morava em São Paulo, costumava dar carona aos alunos da USP, na volta para casa. Gente que eu não conhecia e que ficava pedindo carona, nos pontos de ônibus.  70% deles diziam que o paulista não tinha sotaque. Quem tinha sotaque éramos nós, os nortistas. E o paulista que vai aos Estados Unidos, e fala inglês, ou que vai à França e fala francês, falam com que sotaque? - eu perguntava. Não falam com sotaque. Paulista não tem sotaque em nenhuma língua.  Até Jô Soares também é assim. Ele leva a concluir que quem fala igual a ele não tem sotaque. Elogia os baianos e gaúchos que falam igual aos paulistas e cariocas, por já terem "perdido o sotaque". Os atores baianos sofrem no sul, pois só podem pegar papéis caricatos, devido ao sotaque "nortista", como os mexicanos nos filmes americanos, fazendo sempre o papel do trapalhão.
    Na língua japonesa o acento tônico da palavra não tem nenhuma importância. O que importa é o agudo e o grave.  Se você falar amê com o a mais agudo que o , quer dizer chuva. Mas se você falar o a mais grave que o , quer dizer bala de chupar.  Se você falar sabia, sábia e sabiá, para um japonês, mas mantiver a mesma nota em todas as sílabas, ele não consegue distinguir uma da outra. Está habituado a reconhecer o grave e o agudo, e isso é tão trivial para ele que dificilmente ele terá consciência suficiente para lhe explicar isso.
  No Brasil, a diferença de agudo e grave é que dá a entonação regional.  O gaúcho e o baiano podem falar de forma perfeitamente correta, com entonações totalmente diferentes. E isso é muito bom. Mas o japonês que aprende português numa região tem dificuldade de entender o português de outra, devido à mudança de entonação. O paulista pergunta "Você vai?" usando uma entonação descendente no "vai". O baiano pergunta "Você vai?" usando uma entonação ascendente no "vai".
  Quando estava na faculdade, participei de um Congresso Internacional de  Esperanto em Brasília. Os europeus me perguntavam como se dizia as coisas em português, e uma mulher do sul se apressou em avisar a eles para não aprenderem comigo, que eu falava de uma forma muito áspera e rude. E ela nem se dava ao trabalho de falar na minha ausência.
   No entanto, quando fui ao Japão fiquei surpreso ao ouvir um japonês perguntar por que as descendentes de japoneses que vinham de São Paulo falavam um japonês tão agressivo, enquanto que eu não. Senti o prazerzinho do troco. Principalmente porque uma delas saía espalhando a todos japoneses que eu falava um dialeto do português, dando a impressão de que eu falava errado, que meu nível de cultura era inferior. Na língua japonesa, errar a entonação é errar a língua, é falar um dialeto. Mas não no português, graças a Deus.
   Meditando sobre isso, fiquei imaginando que o sotaque que cada um de nós aprende, aprende no berço, com a mãe. É algo que tem um valor sentimental muito importante em nossas vidas. E de repente alguém se arvora o direito de dizer que você fala de forma inferior a um padrão, geralmente ditado pela economia. É ruim. E isso nos faz concluir obviamente que é importante respeitar todos os sotaques. O paulista que cresceu falando manhê, a soteropolitana que aprendeu mãinha. Não há erro nem mal nisso. O erro está em querer impor ao outro o seu padrão.
  Mas é preciso tomar cuidado. Aqui em Salvador, quando muitas pessoas se erguem para falar em público, frequentemente se sentem como um ator da Globo, e começa a enfileirar artigos antes dos nomes próprios, que não é próprio da nossa cultura: Vamos ouvir agora a Camila fazendo uma homenagem ao Rodrigo.
  A língua é viva - dirão - e está sujeita a mudanças.
  Mas devagar. Um repúdio à própria cultura não pode justificar uma subjugação servil às classes dominantes. Ouvir a televisão local de Pernambuco falar igual a William Bonner me dá a sensação de ir visitar a Tanzânia, e encontrar os nativos todos com perucas louras e lentes de contato azuis, em nome da globalização. Pernambuco não é especial. Aqui na Bahia sinto esse mal estar ainda mais forte, por ver minha cultura de berço ir se dizimando...
  Vamos respeitar as diferenças, e dar vivas à biodiversidade também no sotaque. Tudo de conformidade com o bom senso e o equilíbrio.